O texto a seguir foi produzido como atividade proposta de um curso de formação continuada e com o objetivo de se observar as características composicionais e de estilo de alguns gêneros textuais. Trata-se de um interrogatório baseado numa sequência de eventos relatada na comanda e que se encontra inserida no texto.
Nesse gênero devem-se notar:
· relato dos fatos na ordem em que ocorreram com descrição objetiva e minuciosa dos detalhes que cercam o ocorrido;
· uso misturado de linguagem mais formal com outra mais coloquial;
· relato em primeira pessoa;
· presença de palavras que indicam precisão, tais como números, nomes e endereços.
Um cadáver em minha porta
Fui levada para a 25ª DP e interrogada pelo delegado de plantão a respeito do ocorrido. Eu era a única testemunha, embora isso ainda não estivesse claro em minha mente. Uma nuvem negra pairava sobre a minha consciência, mas eu tinha que responder às perguntas sem comprometer-me. O delegado iniciou o interrogatório sem qualquer atenção aos meus sentimentos. Esta era a sua obrigação.
- Vamos iniciar com sua qualificação. Por favor, nome completo.
- Ana Laura Monteverde.
- Filiação.
- Carlos Antônio Monteverde e Maria Sílvia oliveira Monteverde.
- Endereço.
- Avenida Carlos Gomes, 1527; centro; São Paulo.
- Estado civil.
- Divorciada.
- Data e local de nascimento.
- Vinte e cinco de janeiro de 1981, São Sebastião do Paraíso.
- Nacionalidade.
- Brasileira.
- Profissão.
- Jornalista.
- Por favor, narre, com o maior número de detalhes possível, os fatos ocorridos.
- Bom, doutor, estou muito nervosa, mas vou tentar ser o mais fiel que puder. Abri os olhos e consultei o relógio de cabeceira. Eram 5:20 da manhã, meu horário de acordar rotineiramente. Levantei-me, fui até o banheiro e escovei os dentes. Lavava o rosto quando ouvi a campainha da porta. Preocupada porque não esperava por ninguém, enxuguei-me às pressas, saí do banheiro e caminhei até a entrada. Destranquei a fechadura e, ao abrir a porta, vi um homem caído na soleira. Rapidamente corri o olhar em torno e constatei que não havia mais ninguém no corredor. Abaixei-me e, ao tocar o homem com os dedos, senti que se corpo estava frio e rígido. Fiquei apavorada quando percebi que se tratava de um cadáver e corri para o telefone, acionando a central de polícia. Isso foi tudo, doutor.
- A senhora foi acordada por algum barulho?
- Não sei dizer ao certo. Não sei se estava sonhando ou se ouvi alguma coisa. Estava muito sonolenta para afirmar com certeza.
- Que espécie de barulho teria supostamente ouvido?
- Parecia passos apressados, seguidos de fogos de artifício, conversas. Achei que era um sonho e agora penso que até poderiam ser reais. Estou confusa.
- Ao abrir a porta viu algum vulto ou alguém se afastando?
- Não, apenas a porta do elevador se fechando.
- Conhecia a vítima?
- Não necessariamente. Apenas me lembro de ter cruzado com ela no metrô.
- Isso acontecia com frequência?
- Não, somente uma ou duas vezes. Chamou minha atenção o seu sobretudo bege e o chapéu, parecia ter saído dos episódios de Sherlock Holmes.
- A senhora tem algum inimigo ou pessoa que desejasse prejudicá-la por algum motivo.
- Não que eu saiba, doutor. Mas no meu trabalho às vezes faço jornalismo investigativo e talvez descubra coisas que não devessem ser descobertas, no entanto agora não estou realizando nenhum trabalho desse tipo.
- Na noite anterior ouviu ou presenciou algum movimento estranho na vizinhança?
- Nada que seja surpreendente. Meus vizinhos do andar de cima sempre discutem, gritam, as crianças choram por causa das brigas, às vezes percebo que há até agressões físicas, mas isso é comum nessa família, já estou tão acostumada que nem percebo. Mas, recordando melhor, houve uma coisa diferente: o cachorro parecia latir diferente, uivava como se estivesse sentindo alguma dor e, de repente, a discussão cessou. A mulher dizia que “ele” não tinha nada com isso, que era responsabilidade dela e que seria melhor poupá-lo. Não entendi nada e também não me preocupei. Logo tudo parecia normal, até pensei que o “ele” fosse o cachorro.
-Depois disso a senhora chegou a ver seus vizinhos?
- Não.
- Há mais alguma coisa que a senhora queira declarar?
- Não me lembro de mais nada que seja relevante.
- O escrivão vai ler o depoimento e, se estiver de acordo com suas declarações, a senhora deverá assiná-lo.
Logo após, o escrivão fez a leitura do interrogatório, com o qual concordei e assinei. Mas o pesadelo continuava na minha mente, na imagem daquele cadáver que insistia em permanecer ali.
Fui para casa. Na redação, meus colegas preparavam-se para noticiar o fato do qual eu nunca queria ter participado.